Chamada para Trabalhos: Compendium N.º 4
Prazo para submissões: 30 de Junho de 2023
Tradução e Citação: Cruzamentos Criativos
Prazo para envio dos artigos: 30 Junho 2023
Editores:
Marta Pacheco Pinto (Universidade de Lisboa)
Matteo Rei (Universidade de Turim)
Talvez não seja uma simplificação excessiva afirmar que toda a tradução é, em determinada medida, uma citação mediada de um texto, anterior e estrangeiro. Do latim citare, etimologicamente citação refere-se ao processo de pôr em movimento; do mesmo modo, tradução, do latim translatus, significa “transportar através”. A tradução é, neste sentido, habitada por uma ideia de movimento, mobilidade ou transferência – ou seja, pelo conceito de citação.
Em 2017, em Translation as Citation: Zhuangzi Inside Out, Haun Saussy dedicou-se ao estudo da citação, em concreto: “[A] series of translations that do not so much make an expression in the target language as find it (thus reversing the sequence in which the original necessarily precedes the translation), as well as renderings that do not express the original content in words that already existed in the target language, but import words or constructions (via loan words, calques, transliterations) directly from the source to the target language” (2017: 2-3). Enquanto o primeiro modo de tradução corresponde à possibilidade de citar a partir do repertório disponível na língua de chegada, o segundo corresponde à de citar o próprio texto de partida, isto é, tornar o estranho visível, em particular através da não-tradução ou da transliteração. Em última análise, traduzir enquanto operação de linguagem diz respeito a procurar uma solução na língua de chegada que os leitores reconheçam total ou parcialmente como pertencente a essa comunidade linguística. Neste sentido, a tradução é sempre citacional – é tanto um facto da cultura de chegada (Toury 2012 [1995]) como especificamente da língua de chegada. Por um lado, essa natureza citacional chama a atenção para a citação como uma potencial metáfora tradutória, o que tem implicações no modo como se conceptualiza a tradução e a autoria em tradução. Por outro lado, o modo como os tradutores reagem à presença de corpos estranhos no texto a ser traduzido carece de um estudo mais aprofundado, ou seja, como lidam os tradutores com as práticas citacionais quando estas fazem parte do processo criativo de um autor (e.g., Dei e Guerinicchio 2008)?
Os textos são indiscutivelmente corpos vivos habitados pela diferença nas suas mais diversas formas. As citações – sejam elas epígrafes, citações directas ou referências – são dispositivos literários que chamam a atenção para a sua própria diferença, ao mesmo tempo que revelam a natureza orgânica e polifónica de um texto, além de sinalizarem as afinidades e outras relações íntimas entre um escritor e o mundo exterior. A citação materializa uma presença estranha como uma invasão subtil ou, pelo contrário, mais óbvia, quando resulta de um acto de hospitalidade pelo qual um fragmento textual de um corpo estranho é acolhido noutro corpo textual.
Se uma discussão produtiva da citação não dispensa uma reflexão sobre hospitalidade e estranhamento, a discussão sobre o conceito de citação também não poderá, em geral, ser feita fora do quadro de uma teoria da intertextualidade – como o foi desde Julia Kristeva a Roland Barthes na década de 1960, ou desde Antoine Compagnon a Gérard Genette na década de 1980. Este último (Genette 1982) aborda a intertextualidade como uma relação de copresença textual através da qual os textos comunicam e dialogam uns com os outros. Genette identifica, pelo menos, três modos de intertextualidade, desde o mais explícito ao mais dissimulado, a saber: citação, plágio e alusão. Apenas os dois primeiros casos de intertextualidade são aqui considerados, por serem diametralmente opostos e dicotómicos. A citação enquanto intertexto literal e explícito é tipograficamente marcada como tal (através de aspas ou itálico) e faz-se geralmente acompanhar da identificação do autor original; na qualidade de corpo textual estranho, a citação activa a memória literária ou cultural dos leitores. Pelo contrário, o plágio é uma citação dissimulada, não explícita e, por isso, oculta. Ora se procura fazê-la passar por palavras próprias, ora a referência intertextual poderá ser tão obviamente partilhada entre escritor e leitor que dispensaria qualquer atribuição autoral e se tornaria assim simbólica em vez de uma apropriação escandalosa. Existem alguns trabalhos sobre plágio em tradução literária que abordam o conceito sobretudo a partir de uma perspectiva jurídica dos direitos de autor, mas poucos são os que o examinam de um ponto de vista simbólico ou historiográfico/histórico. Em Marvellous Thieves. Secret Authors of the Arabian Nights, Paulo Horta sublinha “a fronteira porosa entre tradução e roubo, e entre imitação e ventriloquismo”, e a propósito de Richard Francis Burton expõe “uma cadeia de plágios”, argumentando que o estilo de Burton teria sido forjado para mascarar e “reivindicar o direito de propriedade sobre o que ele rouba” (2017: 13 e 252). Como reage, pois, um tradutor quando o plágio se entrelaça com a escrita autoral e quando o próprio tradutor recorre a tais procedimentos? É o plágio uma traição ou, pelo contrário, uma forma de adulação (Horta 2017: 254)
Partindo do princípio de que a tradução é uma tarefa realizada por agentes inerentemente criativos, a nossa abordagem à tradução é, aqui, dupla: tradução como citação e citação em tradução. Acolhemos contributos originais – estudos de caso, análises históricas ou abordagens mais teóricas – que reflictam ou discutam as implicações destas ideias e tragam novas perspectivas às múltiplas interconexões entre tradução e citação, desenvolvendo qualquer um dos tópicos seguintes:
- A citação como desafio tradutório. Como lidam os tradutores com as citações patentes no texto que estão a traduzir? O que acontece quando existem várias traduções dessas citações para a mesma língua de chegada ou, pelo contrário, quando não existem equivalentes imediatos? Quais são as implicações estéticas ou éticas das escolhas dos tradutores?
- Tradução, citação, criatividade e poética de um autor. Sendo a citação a manifestação ou apropriação de uma determinada agência autoral, o que acontece quando os tradutores não conseguem dar conta dessas complexas redes de interdependência? O que acontece quando um escritor forja ou, pelo contrário, dissimula um elo citacional, como no caso das pseudotraduções ou dos pseudo-originais?
- A citação como metáfora de tradução. Pode a citação como metáfora tradutória trazer novas perspectivas sobre este fenómeno? Que implicações pode esta metáfora ter para as noções de autoria e autoria em tradução?
- Tradução e plágio. Como tem a história da tradução sido moldada por práticas ou episódios de plagiato? Quando são os tradutores plagiadores ou quando faz o plágio parte do estilo criativo de um autor, e como lida o tradutor com esse estilo?
- Retradução e citação. Como lida o autor de uma nova tradução de um texto que já existe traduzido para a mesma língua de chegada com a(s) tradução/ões preexistente(s) ou a tentação de ceder à citação, ou plágio, de uma tradução anterior que lhe parece mais eficaz?
- Autotradução e citação. Pode a citação lançar uma nova luz sobre a autotradução (explícita ou implícita), tendo em conta que esta pode ser vista como um modo de (não) citar um texto preexistente? Que novos contributos pode a noção de citação trazer para as práticas de autotradução?
- A citação como dispositivo narrativo em representações ficcionais de tradutores e de tradução. Quando serve a citação como traço do multilinguismo ou hibridismo cultural de uma personagem tradutora? Enquanto personagens de ficção, os tradutores são frequentemente associados a tendências cleptomaníacas e sequestradoras (veja-se o exemplo de O Tradutor Cleptomaníaco de Dezsö Kosztolányi) ou ao ventriloquismo, quando se diz papaguearem as palavras e a voz de outras pessoas. Quais são as implicações de tais metáforas e imagens para a tarefa de tradução e para a figura do tradutor?
São especialmente bem-vindas propostas que incidam sobre tópicos que ultrapassem as fronteiras do mundo ocidental, bem como propostas de doutorandos e investigadores independentes ou em fase inicial de carreira. Os artigos podem ser escritos em português, inglês, espanhol ou francês, e devem ter entre 6.000 e 8.000 palavras, incluindo notas, referências, um resumo de 150 a 250 palavras e 4 a 6 palavras-chave. Os autores devem seguir as normas de formatação indicadas em Instruções para os Autores. Os artigos devem fazer-se acompanhar de um segundo documento contendo uma breve nota biográfica do/a autor(a), até 150 palavras.
Qualquer questão ou manifestações provisórias de interesse poderão ser enviadas para os editores, Marta Pacheco Pinto (mpinto6@campus.ul.pt) e Matteo Rei (matteo.rei@unito.it).
Submissão em linha: para efectuar o registo e apresentar um artigo para avaliação, siga a hiperligação Nova Submissão, acessível na página inicial da Compendium, até ao dia 30 de Junho de 2023.
Descarregue aqui a versão em PDF da chamada para trabalhos.
Referências:
- Dei, Adele, e Rita Guerinicchio, eds. 2008. Il libro invisibile: forme della citazione nel Novecento. Roma: Bulzoni.
- Genette, Gérard. 1982. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil.
- Horta, Paulo. 2017. Marvellous Thieves. Secret Authors of the Arabian Nights. Cambridge, MA: Harvard University Press.
- Saussy, Haun. 2017. Translation as Citation: Zhuangzi Inside Out. Oxford: Oxford University Press.
- Toury, Gideon. 2012 [1995]. Descriptive Translation Studies – and beyond. Amesterdão: John Benjamins.